segunda-feira, 10 de junho de 2013
Fernando Pessoa - Heteronímia
Disfarces de um ser e o forjamento de eus: divisão e multiplicação em Fernando.
Processo de criação artística de Fernando Pessoa é singularmente um caso particular porque se insere dentro de um " programa ou sistema" que, de certa forma, retoma a proposta de alguns escritores românticos: O tornar-se uma espécie de deus, um gênio criador, no sentido de poder gerar, via logos, outros seres em um mundo que é regido pelas leis literárias. Frutos de um imaginário, de perturbações estranhadas ainda no inconsciente, ou representações de um "desassossegado" inadaptado às leis de seu tempo/espaço? Talvez as duas proposições e, talvez, nenhuma delas - se correlacionem ou se excluam. Aqui, agora, será o momento de se enveredar por esta questão, buscando perceber, além destas questões, duas operações matemáticas - a divisão e a multiplicação - no poema Apontamento do heterônimo Álvaro de Campos.
Segundo Massaud Moisés, Fernando Pessoa é classificado como um poeta em quarto grau, ou seja, de acordo com a escola gradual poética, a obra de Fernando Pessoa seria enquadrada no mais último grau que se caracteriza por completo, passando a não tão somente sentir mas viver as emoções que sente.
Dessa forma, Pessoa assume e se desdobra em outros tantos sujeitos líricos quanto a sua alma necessita. Esse processo heteronímico conduz o leitor desprevenido a perceber determinados estados de loucura em uma personalidade desassossegada. A do poeta de Orpheu e mística de Mensagem.
Passemos, então agora, a interpretar essa manifestação heteronímica a partir de um dos tantos heterônimos pessoanos.
Apontamento
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia louça no vaso.
(...)
É sabido que um dos traços singulares pessoanos, talvez o maior deles, é a fragmentação do eu através do processo de heteronímia, conforme já dissemos, que alude, de certa maneira, à maneira divinatória da criação do mundo e de seus componentes, de acordo com a mitologia bíblica.
Sendo assim, em Apontamento, como em muitos outros poemas, o estilhaçamento do eu poético proporciona não só uma divisão no todo como, também, uma multiplicação de eus através da aquisição de vida das partes do todo.
A alma do eu lírico é, metaforicamente, de vidro, porcelana, barro ou outra substância de aspecto frágil, ou assume essa materialidade, pois que " partiu-se como um vaso". O ato de partir (-se) traz à tona uma questão problemática tão discutida em fins do século passado e durante a vigência deste: a questão do sujeito - lírico e social - é uma tônica que se corporifica em toda o seu processo artístico, visto que o conceito de sujeito se modifica no tempo histórico, como afirma Sussekind ( 1993) e, com o advento da Psicanálise, os estudos sobre o eu retalham a anatomia psíquica humana fazendo emergir problemas remanejados do inconsciente para outras áreas limites da vida humana, através do ato falho e este se configura, também, na escrita literária.
A busca humana por uma essência metafísica pode ter conduzido a fragmentação de pessoa, o artista, em vários outros heterônimos que, talvez, fizessem-no, até no plano do terreno, satisfazer uma alma insubordinada, transgressora como a alma do Pessoa. O poema Apontamento deixa evidência nítidas deste olhar vítreo quebrado: " A minha alma partiu-se como um vaso vazio [...]. Um objeto frágil qualquer ao cair espalha seus cacos, fragmentos, estilhaços na superfície com a qual entrou em atrito. A queda e a quebra têm, nesta ação, a conotação de perda que deixa de ter seu valor porque não mais será um todo, mesmo reconstruído. Nunca será por inteiro.
Portanto, fica-nos uma lição do grande mestre Caieiro :" Nem sempre sou igual no que digo e escrevo/Mudo, mas não mudo muito."
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